25 junho 2020

Sobre 'passeios a esmo', como os de junho de 13

Diz a chamada para a matéria, na Carta Maior, que novo filme, 'O mês que não terminou', é o primeiro a dizer sem titubeios que o que chamo de "passeos a esmo de junho de 13"  foi o ' ovo da serpente'! Só rindo, porque, finalmente, uma outra voz vem fazer coro com a minha, dizendo há sete anos exatemente o mesmo. Dizem que a Dilma e o Lula, 'putas velhas' desta zona, ficaram com a pulga atrás da orelha enquanto se desenrolavam dos fatos, mas tendo pelas costas toda uma esquerda desvairada, mantiveram a suficiente discrição a esse respeito.

É que, em vista da lógica de seu desvario, essa esquerda não pode deixar de legitimar o protesto enquanto forma de fazer política, sendo a política aquilo que, todos os que vivemos em grupos o sabemos, ninguém consegue não fazer, ainda que o tente desesperadamente e ache que o conseguiu: e para esse destempero ideológico é 'sagrado',  enquanto 'fazer político', o direito de protesto do povo, seja qual for o motivo ou mesmo, caso do 'junho de 13', sem motivo algum - durma-se com barulho assim!  Mas do que essa esquerda esquece - ou o não quer ou é incapaz de ver - é que, a despeito de sua legitimidade, o protesto é forma menor de fazer política,  visto que por princípio ou natureza própria é antes expressão de anuência e submissão aos princípios estruturantes d'O sistema',  no caso, o patriarcalismo, o dúbio paternalismo, contra parte dos quais os protestantes dizem insurgir-se. O ir às ruas reivindicar o que for, apesar da evidente contundência, é análogo aos esperneios e outros escândalos de se valem as crianças ao se darem conta da extrema e eventualmente humilhante dependência que têm dos seus pais, e que resultam, se tanto, no atendimento a parte módica de suas reivindicações, quando não as enganam com um doce ou são mesmo postas 'de castigo'.

Se efetivos, protestos o são de fato na alavancagem das carreiras de políticos que surfam em sua oportunidade, não raro até dos que são alvos dos manifestantes. Enorme esforço com investimento a fundo perdido em emoção, o protesto tem por oriente natural a ilusão de consertar 'O sistema,' de pô-lo a funcionar como é imaginado dever, de modo que em aparência resulta em caminhada extenuante para não se sair de onde já se está, porque 'O sistema' não tem conserto, sabe-o quem se dá à tarefa de pensá-lo por míseros quinze minutos ao dia e em coisa de um par de semanas descobre que consertá-lo é o mesmo que destruí-lo - e protesto algum, sendo o que por natureza é, pode ter por meta destruir  'O sistema', ainda que da boca para fora quase todo protestante diga o oposto. Vários, enormes protestos, muitos transmutados em verdadeiras revoluções, mostraram isso ao longo da História,  das quais o exemplos mais significativos ainda são as Revoluções Francesa  e Russa: todas, mais cedo do que esperado, voltaram ao ponto de onde partiram, ainda que na na aparência, nos detalhes os mais superficiais, a tolice humana veja alguma evolução, sinais de pífia melhora.

Aspecto seminal d'O sistema', e que a esmagadora maioria de nós faz profissão de ignorar, é que se funda no pressuposto ou necessidade de todos os seus partícipes serem reciprocamente estranhos no que tange àquilo de mais fundamental que a associação de indivíduos propõe se faça, a reunião da força de trabalho de todos em prol da sobrevivência comum, em outros termos, a atividads econômica: a contradicão aí é flagrante não faltando ditos populares que lhe deem fé, como o famoso "amigos, sim, mas negócios à parte", em miúdos, a confissão desavergonhada, reproduzida com graça mundo afora, da total falta de compromisso do indivíduo para com a coletividade no que toca a aspectos mais imediatamente sensíveis da sua pessoal sobrevivência. Acreditar, pois, que massa de indivíduos tenha, de hora para outra, logrado suplantar essa condição de recíproca animosidade por tão só reunir-se em demostração de animosidade específica para com outra fração de indivíduos é indefectível esgarçamento da razão.

Enfim, demonstrar animosidade para com seja o que for, ainda que com o propósito de o destruir,  é de vários modos expressar a alguma importância disso para quem o hostiliza. É, então, um dos modos do afeto e, enquanto navegação em águas assim incertas, é trajeto sem rumo preciso, podendo ir de um pólo ao seu oposto sem os navegantes se darem conta. No momento em que protestantes empedernidos entenderem a inefiácia e o ridículo de seus atos frente ao que poderia o mundo ser para lá de seus risíveis sonhos, perceberão de enfiada que o modo único de o materializarem, livrando-se, assim, d'O sistema', é demonstrarem todo um real desafeto por ele, deixá-lo para trás, de lado, esquecê-lo, o que acarreta entenderem-se de fato, sem necessidade dos usuais intermediários que, a bem da verdade, em prol de garantir o ganha-pão próprio, têm de atender a apenas modesta fração das reivindicações dos protestantes, iludi-los com doces e mesmo castigá-los depois de se haverem lucupletado das sobejas e gratuitas campanhas que os protestos proveem para suas carreiras. É triste que tudo ainda corra sob tamanha e vexaminosa perda de tempo e energia!

21 junho 2020

Sobre delação - a legal e a jornalística

Dar com a verdade é quiçá a maior e mais persistentemente insolúvel das questões acossando o ser humano, não tanto por desconhecimento dos meios para abordá-la, mas pelo trabalho, pelo esforço exigido para usá-los, em particular o mental. Sendo auto-contraditória a admissão de ser assunto irrelevante (pois desse viés não há como aferir a relevância dessa afirmação mesma), mais fácil tem parecido a muitos reduzir o rigor quanto ao que julgam ser verdadeiro, com frequência estimulados por entendimento equivocado de ideias como 'intuição' e 'fé', criando assim nichos em que se crêem protegidos dos males inerentes à suspensão da verdade (e em grande medida dos que é possível advirem depois de conhecida), mas só enquanto não se tornam eles próprios vítimas da proteção que criaram..Vale, pois, por precaução considerar durante ao menos alguns instantes o que se segue.

Delação premiada e proteção do jornalista às suas fontes têm mais em comum do que poderia o negar mesmo uma consideração mais demorada do problema. Centrando no aspecto 'prova', inseparável do ato de propor seja o que for a respeito do mundo, não parece haver dúvidas de que tanto o delator quanto o jornalista tenham de apresentar a que corresponde ao relatado por cada qual. Entretanto não tem sido bem esse o costume.

Em ambos os casos estão em jogo fatos, e lembremos que fatos, no caso do primeiro, são em tese tudo com que pode e deve a Justiça lidar se neles se constatam violações de leis, crimes, e todo crime é suposto ter ao menos um autor, a ser penalizado se a isto conduzirem as provas. Já no contexto da segunda não é necessário que o fato em questão viole alguma lei, pois é possível, por exemplo, conceber alguém esquivando-se da acusação de vaidade de anunciar publicamente ato seu de filantropia, preferindo omitir seu nome na notícia de que onpraticou, mas quando é crime o objeto da notícia, a probabilidade de a ocultação da fonte ser também ato criminoso torna-se perceptível.

Imaginem-se assim quantas delações feitas por criminosos, e cujo prêmio é a omissão mesma da identidade do delator, podem tramitadar na imprensa sob os auspícios dessa 'regra de ouro' do jornalismo! É verdade, muito se elucidou também por seu intermédio, mas não é em absoluto equivocado perguntar-nos - e ingênuo seria fazer o contrário - se grandes crimes (crimes perfeitos!) não seriam perpetráveis por essa mesma via. Em suma, se tem potencial para produzir provas de crime, a proteção seletiva de fontes de notícias teria em tese potencial idêntico para ocultar ao menos um de seus autores ou, pior ainda, para ser ela própria instrumento dos criminosos ocultados. Ademais, o conhecimento da identidade de uma testemunha pode ter peso significativo no que relata e esconder alguma pode ser indicativo de crime como o sequestro ou a ocultação mesma de provas.

Contextualizem-se agora essas duas ferramentas - tidas por auxiliares valiosos para o conhecimento da verdade - num meio social muito afeito a desprezar, sempre que conveniente, a intermediação essencial da prova para a denúncia falar com o veredicto. Desnecessário ser autor de novelas policiais para fantasiar o romance não declarado que aí vivem as duas, tal e qual pares famosos na história da infãmia, mas com a particularidade de, neste caso, contarem com a colaboração, com o acobertamento de quem é suposto comprovar malfeitos, julgá-los e corrigi-los (puni-los).

Em todas as circunstâcias, reiter-se, é brutal a suspensão da presunção de inocência mesmo em presença de indícios de culpa, brutal para o alvo de denúncia sem evidência tanto quanto ou ainda mais para quem a usa para acusar e condenar, e por isso o abuso aqui de condicionais e subjuntivos na abordagem do tema.

14 junho 2020

'Neoliberalismo' e a inútil guerra ao que representa

'Neoliberalismo' é o resultado ideológico da tensão estabelecida desde o século XIX entre o capitalismo e a agenda dita 'de esquerda' em prol do Eatado de Direito. Em si o capitalismo não mudou uma vírgula do que em essência é (ou seja, sistema resultando do uso do conceito de dinheiro) depois do credo neoliberal, passando a ser, isto sim, mais franco quanto aos seus objetivos e aos meios de os atingir. Seria, como costumo dizer, um 'neo-despotismo esclarecido', adotando inclusive traços fundamentais do despotismo esclarecido clássico (contemporâneo do Iluminismo), como o viés populista, denotado na ideia de que haverá quinhão justo da riqueza para todos, uma vez o (famoso) 'bolo' cresça o suficiente.

Com a instalação da URSS o capitalismo passa a mais seriamente procurar por argumentos que o justifiquem e por procedimentos que garantam seu irreversível sucesso, lançando mão de inclusive pontos da agenda da esquerda, ou ainda, cedendo terreno ao Estado de Direito sempre que não tinha capacidade de solucionar, e com agilidade, problemas cruciais, mormente ao longo de catástrofes como as duas Grandes Guerras e as crises que tem de parir a cada decênio. Embora um bocado diversificada, a ideologia neoliberal tem por meta inegociável recobrar o que cedeu ao Estado de Direito e por metodologia usa o velho 'morde e assopra', em que alterna a crua sinceridade do individualismo capitalista e a desgastada história da carochinha do 'bolo' que é preciso fazer crescer para ser 'dividido'.

Tudo sempre foi mercadoria nesse sistema, exceto a partir dos horrores das Grandes Guerras, que por 'sorte' ocorreram quando o debate em Ética havia ganho alguma maturidade, a suficiente para chegarmos a uma Carta - mais ou menos universal - sobre Direitos Humanos. Com o tom franco acerca de suas cruezas e a nota da promessa 'a fundo perdido' de uma desigualdade menos acentuada o capitalismo vem formando verdadeiro exército de seguidores no front de sua reconquista do poder de comerciar seja o que for. A fobia pela esquerda nutrida por esses 'soldados', apoiada nas notícias dos 'insucessos' da agenda da esquerda ao longo do século passado e, mais, nas desgraças que teria ocasionado (a maior parte delas fomentadas pelo próprio capitalismo, história essa, portanto, muito mal contada), tem sido o instrumento mais eficaz (mais do que o 'morde e assopra') na arregimentação das hostes neoliberais, não raro no campo legítimo da esquerda, de onde vêm os mais propensos a fanatismos, inimigos viscerais do esquerdismo.

A 'guerra' (a propósito, instituição permanente desde a concepçáo da ideia de dinheiro e a ela inerente) contra o capital é necessariamente circunscrita ao terreno das ideias e, é claro, das atitudes coerentes com elas. De nada adianta, por exemplo, acreditar-se anti-capitalista e agir sob coação do capitalismo, circunstância muito comum e sintomática de seja a ausência de unidade dos anti-capitalistas, seja inconsistência no que deva ser o anti-capitalismo, ambos os casos resultando da reflexão incipiente. Para sair-se desse impasse seria preciso haver clareza na compreensão de que por esforço isolado do indivíduo o capitalismo jamais se dissolverá (ponto autoevidente), nem em se mantendo o uso indiscriminado e irrefletido do dinheiro (que é sua mola mestra), sem programa de ações coletivas que conduzam os indivíduos ao afastamento ideológico progressivo do sistema, não ao confronto (porque o uso do dinheiro é por natureza confronto, de modo que confrontá-lo é jogada em que é imbatível, frustrada de saída para o opositor), e sem o contigente de usuários seus - ainda que modesto - disposto a seguir tal programa. Por fim, é também preciso compreender com clareza que a concepção de um 'capitalismo disciplinado' antecedendo a extinção do capitalismo, característica disto a que em grande parte reduziu-se a esquerda, é - como tem-se mostrado seguidamente - inócua, daí advindo a alternância de ciclos em que os Estados pendem para a direita ou para a esquerda, mas sem jamais se afastarem de fato do sistema do capital.

01 outubro 2019

De um ditado, a uma fábula: fazendo sentido de uns tantos sinais - ou em defesa da legítima defesa.

Para Sandra Paes.

Pode trata-se de palpite, e exagerado, aquilo de dizer que as grandes ideias aparecem primeiro nas mentes loucas, migrando em seguida para a dos artistas, só então sendo percebidas pelos filósofos, que as comunicam aos homens de ciência que, por sua vez, abrem caminho para engenheiros fazerem delas coisa que se use. Mas se damos algum crédito  a esse hipotético sequenciamento de fatos, não seria também o caso de dar atenção à defesa que há séculos uma certa classe de dementes faz do uso generalizado de armas como preventivo da disseminação da violência? Não que se trate de ideia verdadeiramente grande, embora não se possa negar ser de particular utilidade a atenção que lhe daríamos, como se verificará a seguir.

Esses pobres coitados estariam referindo, na verdade, eles próprios, inadvertidamente alertando a nós demais para o perigo que representam em sendo, como são, adictos de uma rusga que de preferência acabe em sangue - e, de preferência, não o deles. Não que sejam ou se tenham tornado 'bonzinhos': de fato continuam dementes como sempre e intentam desse modo apenas aumentar o número de participantes em seu ritual preferido, pouco se-lhes dando que seu projeto termine por municiar seus alvos preferenciais, de hábito indefesos defensores de sociedade pacífica, que decerto lhes teriam na mira quando necessário.

A razão no fundo de tamanho descabimento não poderia ser mais simplória: estão seguros de que sacarão primeiro de suas armas, de que estarão melhor escudados ou entrincheirados. Em suma, estão certos de prevalecerem sempre, uma vez que sua meta, como a de quaisquer de nós, é o exercício de algum 'poder', no caso, entretanto, esse pífio, destemperado, de submeter todos à própria vontade ou de sobreviver em detrimento de quem quer que seja.

Vale, portanto, dar ouvidos à sua sanha armamentista, assim como ao uso quenp de há muito fazem da violência que lhes inere com as armas que já possuem, e quiçá achar meio de realizar o quanto antes e com o mínimo possível de sujeira, a título de medida preventiva ou legítima defesa, aquilo para que devem estar preparados, caso algo de minimamente coerente lhes tenha restado nas cabeças, aquilo para que, na verdade, todos nascemos:  tornar-nos adubo. Já passa da hora de, por outro lado, seguirmos a moral que, desta feita, um sábio, Esopo, nos legou na fábula do cordeiro e do lobo, e que corresponderia aproximadamente a:  não há razão que satisfaça a um tirano.

De nada adiantou a ovelha argumentar sobre ser impossível ter enlameado a água de que bebia também o lobo, porque ela estava correnteza abaixo, que não poderia ser ela quem o teria xingado no ano anterior, porque só contava seis meses de vida - ou melhor, se algo adiantou para a pobre da ovelha toda essa conversa, foi o ter vivido o suficiente para se dar conta da moral da história ao ser devorada, depois de o lobo 'formar a convicção' de ter sido o pai dela quem o xingou.

O dar a outra face, espécie de contra-argumento final da vítima quando quaisquer outros se mostram irrelevantes na contenção da tirania ou da tortura a que é submetida, teria o condão de confrontar o tirano ou o torturador com a evidência de que falhou na estratégia de procurar justificar seu impulso destrutivo de outro modo que não como mero ímpeto de destruir, de torturar - aliás, torturadores experientes é sabido usarem da argumentação falaz como um de seus instrumentos, de modo mesmo a amplificar a dor que impõem à vítima. Na fábula, entretanto, a ovelha não o utiliza, é possível que por lhe ter faltado a oportunidade, mas é provável mesmo que por já ter sido mais que evidenciada a intenção do lobo e por não estar em meio às intenções dela o capitular. Porque é esse, de capitulação, o sentido central do oferecer a outra face, vindo embora somado a espécie de audácia ou destemor que, a propósito, seria capaz de privar de todo o élan um sádico autêntico e cujo prazer estaria em obter da vítima os sinais incontestes de que sofre a contragosto, diferentemente do masoquista, a quem, ao contrário, deleita o sofrimento.

São poucos, portanto, os capacitados a arcar com tudo quanto acarreta havê-lo usado, e mesmo aquele que o tornou conhecido vacilou ao menos uma vez diante de suas óbvias consequências, quando desejou ter afastado de si tal "cálice", já a meio-caminho do suplício que terminaria numa cruz. O estóico Epicteto foi outro a ter estrutura suficiente para, a despeito do resultados, usar do argumento em uma sua variação, quando advertiu o indivíduo de quem foi escravo de que aleijaria uma de suas pernas se continuasse golpeando-a com tamanha fúria, ou seja, alertou o sujeito para o fato de que inutilizava um de seus próprios bens, de que o alijava da serventia que tinha enquanto escravo, mas não foi ouvido.

É justo aí, no dar a outra face, ou melhor, em o recusando, que a proposta de armar-se vai buscar justificativa: para quem a defende, pois, o argumento final - ou mesmo único - da vítima diante de um acossador teria de ser antes o aniquilá-lo de maneira sumária ou, ainda, a recusa peremptória a capitular ante acosso ou tortura e com que, é bem provável, a ovelha de Esopo gostasse de contar. No entanto não seriam poucos os lobos que igualmente apreciariam ter a mais em seu arsenal esse ítem e que se vestiriam de cordeiro, se necessário, para o pleitear, o caso desses tornados dependentes da química endógena às circunstâncias de conflito, bem como dos que fazem fortunas com o municiá-los.

Enfim, há um aspecto de fatalismo nesses momentos em que de fato parece não haver escolha, senão entre resignar-se a perecer e reagir à agressão cega e surda a todo apelo da razão, ou ainda, a escolha entre dar a vida em nome do quanto conquistou a civilização em termos de ética e dar passo atrás na suposta escala evolutiva, equiparando-se àqueles bichos de que tanto e de modo tão árduo procuramos nos distinguir. Afora isto, resta somente cogitar de prevenir tais ocorrências, se não de todo, ao menos em termos de sua frequência, para o que só se conta com a compreensão do que as causa, se é o caso o abrir mão de todo revide. Os que especulam nesse sentido, entretanto, vêm-se muito amiúde esbarrar - ou buscam arrimo - na que seria, das soluções para o problema, a mais fácil, não fosse também estéril ou dificilmente frutífera quanto ao que se almeja: trata-se da que atribui a algo inerente ao 'bicho-homem' a eventual perda da sua porção de humanidade, mais conhecida como a hipótese do lado mau ou obscuro da 'condição' ou 'natureza' humana.

Se algo de incontestável se quer dizer sobre uma suposta 'natureza humana', isto seria, antes de mais, a natureza elusiva do quanto seriam seus atributos - entre os quais, naturalmente, a capacidade de produzir o que se entende por 'mal' - ou, ainda e melhor, a variegada aparição dos mesmos, ao que parece, atributo ineludível de todos ser vivo, correspondendo mais precisamente à capacidade necessária de adaptar-se aos rigores do meio em que está e cuja alternativa única é o perecer. Em suma, não passa de mero truísmo vindicar o cometimento de más ações pelo indivído com a ideia de 'por natureza' ele ser capaz de as cometer, porque se é capaz de cometer seja o que for, conquanto isso não frustre o que se intenta obter, e tal é ditado não somente pelo que de inato o indivíduo tem, mas por igualmente o quanto o meio em que está lhe exige usar do acervo de suas aptidões.

A consideração disto conduz incontinente ao rol das escolhas feitas no processo de civilizar-nos, não necessariamente ou intrinsecamente más, embora em virtude do uso ostensivo e prolongado umas tantas se tenham tornado maléficas. O fato de havermos permitido - é provável que por ter parecido a nós ser fonte de justiça - consolidar-se no alicerce sob qualquer grei humana - o da produção e distribuição de riqueza, ou economia - sistema  de atribuição de valor, segundo escala numeral,  aos diferentes tipos de trabalho humano não pode ser posto de parte enquanto deliberada - embora precipitada - engenharia das relações sociais em que se naturaliza - sem que se a justifique - a prevalência de uns sobre os demais indivíduos: eis o 'ecossistema' a que nossa natureza vem respondendo.

Vulgo 'preço', o valor em  moeda não se atribui ao produzido, mas ao trabalho de o produzir, como bem alertou Smith, por certo dando azo, assim, a que figuras como Marx daí derivassem intermináveis sistemas. E dizer 'trabalho' é referir tudo quanto possui um ser vivo em resposta ao próprio meio na faina necessária de sobreviver. Não é de admirar que num ambiente engenhado sob semelhantes premissas a 'pulsão' de permenecer vivo engendre soluções cujos resultados são todos passíveis de descrever-se no âmbito da acepção de 'guerra', no caso, uma declarada em regime de permanência e no âmago da sociedade ela mesma.

Prevalecer ou evitar que se prevaleça são os motores tanto dos lobos quanto da resistência que se lhes possa fazer, aí incluso o dar a outra face, porque capitular, mesmo depois de confrontar o atacante, também sinaliza para a opção de abrir mão da própria existência - de abandonar esse jogo - quando fadada a semelhantes penas. Parece não haver outros resultados possíveis de advir dum habitat constituído como o fizemos, nem modos de aí viver-se distintos destes. A diferença é e será feita, como sempre, pelo quanto, dentre tanto, se sabe escolher ou, de maneira mais ampla, pela escolha de revisar e remodelar isto que nos vem induzindo a semelhantes opções.

11 agosto 2019

O sentido exato do 'fator Greenwald'

Para muitos não passará de picuinha, mas serve, seja como for, para aviar a colocação das coisas em lugares certamente mais devidos ou apropriados do que esses onde ainda estão: 'O Cara' - "The Guy" - é condenado a  prisão perpétua (porque, convenhamos, para um septuagenário uma dezena de anos pode até exceder o limite separando-o da eternidade) por 'crime inespecífico'! Onde já se viu coisa tal?

Desnecessário ser-se doutor em direito para saber, antes de mais, que para se tornar passível de punição pelo aparato que administra o Estado o sujeito tem de ter cometido crime prescrito em lei. É por aí mesmo: sem a lei, que o proscreve, ou o declara criminoso, qualquer ato é apenas ato a mais, ato qualquer, o que implica também o velado paradoxo em que se admite ser a lei o que 'faz' o crime! E justo pelo papel crucial de mudar a condição legal de atos quaisquer, não faz qualquer sentido que o faça sem criteriosa especificação do quê e do porquê um ou outro deles em particular passou à ilegalidade. Mesmo alguns daqueles tidos por indiscutvelmente criminosos, como o matar e o roubar, têm de ter, cada qual, sua prescrição em lei, se não por motivos quaisquer, ao menos pelo fato óbvio de numa circunstância como a da guerra, por exemplo, ambos passarem à 'legalidade', e não só: tornam-se aí obrigatórios, sujeitando quem se omite a praticá-los a pena de morte, às vezes mesmo 'em flagrante', sem sequer direito a Corte Marcial!

'Crime inespecífico' seria, por conseguinte, epítome do que, em 'legalês' franco, tem jurista que mostra os dentes trás nuvem de perdigotos para pronunciar o termo designando-o: "teratológico", ou seja aberrante, mostruoso e, não meçamos definição, criminoso. Para se fazer ideia, ainda que vaga, da gravidade deste crime, imagine a si próprio objeto da abjeta sentença, mas se o não conseguir, não há problema: basta abrir O Processo, de Kafka, e se também não for chegado a ler mais do que par de 'memes' por dia, o Welles cuidou de nos legar obra-prima que  fez do livro e na certa tem versão dublada na Rede. Foi quase certamente daí que se tirou o conceito 'crime sem especificidade' e com certeza depois de malograda tentativa de enquadrar "O Cara" em outro, vagamente específico (por impossível tipificar o conhecimemto, sumamente subjetivo, nele implícito), não por acaso originariamente lavrado também em língua alemã e denominado 'domínio do fato', empregado não havia muito para condenar sem qualquer credibilidade um "Cara" outro!

Enfim, tomar 'crime inespecífico' por algo distinto de reles contradição - uma vez inerente à lei especificar o que criminaliza - e, pior, tentar extrair daí algum significado jurídico, como foi o caso o fazerem pardas eminências do direito e da política (a despeito de visivelmente incomodadas, algumas, com o desplante tamanho do juiz), ora, é crime prescrito como 'de conivência', indício sério de que 'crimes sem especificação' já são prática tácita e vetusta na condenação de hordas dentre os hoje amontoando-se na porqueira dos presídios.  E, ora, significados quaisquer, jurídicos ou não, são validamente deriváveis de qualquer contradição, segundo se aprende em Lógica elementar, embora esta, do 'crime inespecífico', conote mensagem deveras expressiva para o universo do Direito, da Política e, enfim, para a cidadania na totalidade: a de que doravante, dada a 'jurisprudência' espúria, é bastante um juiz sentenciar, à revelia de provas e leis, para confinar seja quem for por período ao gosto do julgador.

Entra em cena, então, "O Jornalista", provocada sua responsabilidade profissional por achado que, entanto, se tanto, mostra como se urdiu o óbvio e consabido, o embuste. Reitere-se: desnecessária é qualquer prova além da exclusiva conferência dos autos para o reconhecimento de crimes, esses - sim! - bem específicos, cometidos por quem seria suposto puni-los: as mensagens trocadas no covil são, quando muito, redundantes quanto à função de provas, que legalmente são incapazes de cumprir, a propósito, por se terem produzido sem expressa demanda judicial, não excedendo portanto o papel psicológico da fofoca, que sabe a pimenta nas línguas soltas, sequer comparando-se, nesse sentido, à teia de cartas imaginadas pelo Laclos, sem as quais a cadeia de maldades arrastando a grande parte das personagens de Ligações Perigosas passaria por casualidade, em lugar de por deliberações expressas de um casal em interminável ciclo de paixão e rancor. No entanto têm valor inapreciável, por outro lado, no desmascaramento, na acuação da referida hipocrisia generalizada dos meios jurídicos e políticos sustentando-se da ignorância de natureza patológica da população em geral.

Mantendo o bordão do paralelo com o universo ficcional, impõe-se comparação a seguir, cuja correspondência com os fatos me parece pontual: o sujeito assiste a filme, mas sustenta ter visto nada, salvo depois de ver 'making of' da obra (nada obstante não autorizado pela equipe que a produziu), vendo-se assim constrangido a admitir que o filme - a que deveras assistiu - existe deveras! Ionesco não teria pensado enredo muito diverso! Se não a franca má-fé,  portanto, uma atitude tal se deveria a estupidez absoluta, senão a alguma 'conspiração' de ambas.

06 agosto 2019

Saber o que seja 'poderoso'? Olhe para o impotente.

Essas particularidades dos conceitos, de suas definições: nada se define por conta própria, em si, sendo necessário haver outra coisa para que algo se defina.

Tome-se a ideia de 'poderoso', por exemplo: chega-se perto de um, vê-se não passar de indivíduo como outro. Por si ou em si um poderoso não diz nada, todo o poder que lhe atribuem vindo-lhe, em verdade, de fora, da circunstância de haver, em quantidade multitudinária, quem diz e faz de si próprio impotente.

Advogando para o diabo, alguém pode inquirir: mas não seria o poderoso o que torna impotentes os demais? E em resposta, ouviria o que segue: é provável que não, por sermos todos, em princípio, igualmente poderosos por natureza, o que, a bem da verdade, não é dizer muito, porque, como se sabe, 'poder' designa aquilo que ainda não é nem foi ato, havendo embora condições para que haja ou tenha havido, ou seja, algo vizinho da ficção, de modo que, exceto os faltos de algo crucial dentre o que é comum à maioria, cada qual de nós desfruta de potencialidade equivalente às demais enquanto não decida coibi-la, isto é, enquanto não delibere que para muitos dos potenciais próprios estará fora de cogitação se tornarem atos, desse modo tornando automaticamente mais poderoso quem não se impôs tal coibição.

As razões para tornar a si impotente? É possível haver muitas, embora essa da comodidade pareça ser de importância considerável, já que em ambientes como o resultando do acordo social sob que vivemos, em que vige a competitividade, o exercício de pôr em ato os potenciais exigidos para que se compita é ou parece ao impotente ser por demais desgastante, pelo que escolheria desde apoiar quem compete até abster-se de toda iniciativa, assim entregado-se ao controle e à predacão de quem por sua renúncia deixou de ser um entre iguais e passou à condição de poderoso.

20 julho 2019

Estúpido é o sistema, mas não mais do que os que lhe permitimos continue instalado!

A questão central nossa não é a de um mero desvio ou deslize moral! Sinto muito! É, sim, o sistema, mas não exatamente como o viu Marx.

Desde que cedemos ao uso do dinheiro - conceito urdido, é provável, ao longo de milênios até chegar à forma da moeda, como o conhecemos hoje - e em torno dele organizamos o que produzimos, livrar-nos dos males que por natureza própria ele nos causa tornou-se algo contra que, sozinho, o mero imperativo moral é impotemte, mesmo porque o dinheiro ainda guarda muito da sua aura de promotor de justiça ou da justa negociação, ainda que à força de muita hipocrisia. Adotar as sugestões de boa conduta do Papa ou do Dalai Lama não ajuda em praticamente nada em termos de salvar-nos do capitalismo, seja atenuando-o ou o extinguindo, antes sendo provável que agudize a sensação de impotência - em particular a moral -  diante dele.

É preciso que se entenda a incapacidade de o dinheiro dar conta de distribuir bem a riqueza (que é tudo quanto produzimos), processo que antes, a bem da verdade, ele atrapalha, assim como atrapalha a própria produção, uma vez que tudo se planeja, não em função do produto negociado, mas do seu valor monetário (um signo, símbolo, no sentido de Peirce), que obnubila tudo quanto é de  real interesse relativo ao produto, a quem o produziu e a quem o consome.

A malversação que faz da produção é simplesmente catastrófica, pois de necessidade alija do processo produtivo - e, por conseguinte, da sociedade, já que não tem acesso a salário - parte significativa da mão de obra, já que por princípio não é preciso que todos produzamos o tempo todo, e sim em turnos, uma vez que produzir é, por natureza, multiplicar: na verdade o dinheiro se vale dessa propriedade do trabalho para multiplica-se - o lucro!- e ainda assim é incapaz de fechar contas. Por natureza, também, o dinheiro não pode nem tem como fechar contas, caso contrário, deixa de funcionar.

Não há dúvida de em potência o indivíduo humano ser bom,, no sentido de por natureza pender para a busca do que julga ser bom, mas o uso do dinheiro é, faz milênios, o maior empecilho ao desenvolvimento desse potencial. E estamos presos ao dinheiro por uma questão de estrutura, de sobreviência, cujo desmonte causará  de fato muita dor de cabeça, embora se trate de sistema burro, que nem promove justiça, nem favorece a produção - bem o contrário. Além de evidentemente termos nos tornado eticamente desprezíveis por ter de usá-lo, continuamos a o fazer por medo ou falta de vontade de mudar, mas principalmente por pura estupidez, por falta de curiosidade de saber como ele realmente funciona e por darmos ouvidos às lorotas de quem faz da vida controlar-nos por seu intermédio, usando-o à maneira de rédeas, chicote e espora. E, não esqueçamos: o malfeito - o mal - é em verdade o primogênito da ignorância.

09 maio 2019

A catástrofe somos nós!

O tragicômico é como encaramos o fato de o clima terrestre estar mudando  de maneira crescentemente errática: de um lado, os cientistas, francamente divididos entre culpar o capitalismo ou forças muito maiores, como fatores até então ignorados do sistema solar em sincronia com outros tantos saindo das entranhas da Terra, dois fronts que de necessidade não se excluem; na traseira deles, arrastados pelo debate, nós, 'o público', os maiores interessados, a passarmos os olhos por relatórios e reportagens sobre o tema com o espírito de isto não ser coisa para leigo entender, nada obstante repercutamos feito cornetas tontas e a cada dia, mais (em vista do evidente aumento dos reveses do tempo), quase tudo do assunto que nos cai no colo, sem uma palavra sequer sobre os méritos da controvérsia - porque, como já se sugeriu, isto seria coisa exclusiva de 'especialistas'.

Como consequência desse vício de delegar, ignoramos que ocorre de o nosso sistema de vida, capitalista, ser incompatível com o quadro já se apresentando, pouco importa o viés da ciência para a causa das reviravoltas climáticas: porque se é ele o verdadeiro causador, tem de ser contido (embora o McPherson, especialista 'maldito' da área, esteja certo de não adiantar mais coisa alguma além de encomendarmoa as próprias almas), e se não o é, de qualquer modo é incompatível com o cenário de um par de anos à frente, de sorte que o que devíamos estar fazendo, em vez de passarmos a vida a espernear para vir alguém dar algum jeitinho de todos cabermos nos parâmetros altamente excludentes do capital (coisa jamais ocorrida, mesmo quando fomos a décima ou a vigésima parte de quantos somos agora, e que jamais ocorrerá, por ser isto incompatível com o funcionamento do dinheiro), deveríamos mesmo é estar há anos discutindo feito gente grande alternativas sérias para o capitalismo e tudo que tem ele acarretado para nosso modo de vida, como a estrutura de governo, por exemplo, entre incontáveis pontos outros.

Mas em vista da incapacidade de demonstrarmos outra coisa que não o grau de nossa adição por dinheiro, para quem o tem de sobra e, por exigência mesmo do sistema, tem de continuar fazendo-o mais e mais, nada resta além de tirar o melhor proveito da oportunidade e ordenhar até a última gota a vaquinha da catástrofe climática, produzindo assim uma espiral que não é preciso ser gênio para deduzir onde vai dar: na situação-limite de ausência generalizada dos recursos mais básicos, da comida à Internet, passando por eletricidade e, ainda pior, pela água potável, não há dúvida de que essa será a guerra em que lutaremos, como sugeriu Einstein, com paus e pedras, mas sem que uma só bomba nuclear tenha sido detonada.

06 maio 2019

Da guerra desdenhada

Uma das virtudes do 'dinheirismo', do viés dos melhor posicionados na hierarquia a que de necessidade ele induz,  é a quase completa obliteração, em particular nos ocupantes dos estratos médio e inferior da sociedade, da sensibilidade para os limites entre paz e litígio. Não raro um ato exp!ícito de guerra - declarada ou não - pode passar por desvio circunstancial da normalidade até ser reiterado por outro ou até a governança soar o alarme.

Poucos sentem a permanente inquietação belicosa no cerne de instituições normalizadas, como a perspectiva de ascensão funcional, por exemplo, que até mesmo no interior de grupos cujos integrantes é suposto terem motivos de sobra para forjarem identidade solidária forte, como o dos escravos, é bastante eleger um ou uns poucos para a função de capataz e assim instaurar imperceptível e generalizada disputa que aos poucos dissolve toda possibilidade de consenso. Estenda-se esse modelo ao contexto do possuir-se ou não função remunerável no todo da sociedade, que de fato jamais precisou da totalidade dos indivíduos trabalhando simultaneamente para produzir o necessário e mesmo o 'supérfluo'.

Esses exemplos devem bastar para deixar claro que a grande maioria dos atuais habitantes humanos do Planeta jamais viveu em - ou sequer conheceu - alguma sociedade semelhante à que idealiza ser essa de que é parte. 'Idealiza', sim, porque a continuidade de todo grupo social depende em grande medida da chamada 'doutrinação', espécie de educação que se compartilha quando do contrato social constam pontos nebulosos, insustentáveis - por injustificáveis - sem menor ou maior dose de condicionamento.

Por isto se entende o valor meramente retórico assumido em sociedade como a nossa por idéias doutrinais como a de 'solidariedade', central para a constituição e manutenção do tecido social, bem como por derivadas suas, como a noção de 'amizade' ou a de 'família', todas sujeitas a relativização imponderável, não fosse esta justificável no uso do dinheiro para distribuir riqueza. E nada mais natural é essa condição tornar-se a permanente dum grupo doutrinado para naturalizar a artribuição de um cardinal arbitrário à força vital do indivíduo, número tanto menor - não raro podendo mesmo ser 'zero' - quanto mais fundamentalmente necessária for a função que desempenha no projeto comum de sobrevivência, e nada menos surpreendente, do mesmo modo, do que haver poucos de autenticamente resignados à má sorte, bem como poucos, dentre os que não se resignam, a manifestarem indignação e que, devido ao estremecimento generalizado que causam na teia social, são combatidos, quase sempre pelos demais todos, indiferentemente, quando o mero ignorá-los não bastou para os aquietar.

Na sociedade governada pelo 'dinheirismo' há certa predileção por manter tácitos os pressupostos do conflito, assim como a admissão da maior parte dos seus atos explícitos, espécie de exercício de tolerância máxima pautado pelo cultivo cuidado da hipocrisia. Por isso os sinais inequívocos do que de fato chamamos 'guerra' são detectados com dificuldade uma vez que se toleram, vivendo-se ao lado deles,  efeitos dos mais evidentes desses conflitos cabais, como a miséria: a guerra perpétua do 'dinheirismo' a produz nesse silêncio acordado à volta das tolerâncias permanentemente assediadas, a mesma miséria resultante das guerras de fato, é provável que diferindo desta somente por ser em aparência menos generalizada.

Curioso é com efeito haver contingente significativo de indivíduos intolerantes a esses sinais nebulosos de flagrante conflito e que efetivamente o denunciam, mas que o façam dum viés cuja eficiência é mais do que discutível, uma vez que autopoliciam sua denúncia para dar a entender que apenas relativa a gravidade do contexto, motivados pe!a esperança vã de sobre essa base, a da atribuição de valor arbitrário ao trabalho do indivíduo, ser possível superar todas as dissensões que, não por acaso, ela própria cria. O propósito - não menos alimentado pela hipocrisia - de preservar a todo custo contrato social que por princípio não tem como sustentar-se nem produzir efeitos diferentes não poderia, ele próprio, ter efeito mais tóxico, revelando e propagando a ignorância em cujos interstícios vêm instalar-se iniciativas ainda mais atrevida e explicitamente indistinguíveis da guerra, a de fato, como o extermínio sumário de toda dissidência do pensamento hegemônico, desta feita lavradas em lei.

O quadro geral não poderia ter mais clareza, confirmada ostensivamente pela consulta à História, seja qual for o período observado: existir sob tensão maior - e intolerável - ou menor - e não por isso insofrida - é a norma permitida pelo 'dinheirismo', ainda que, por exemplo, se homogeinize a valoração do trabalho, pautando-a pelo quanto ele dura, como de maneira assistemática se procura ainda fazer, porque mesmo assim permanece franqueada a circulação da cobiça, que ao custo mesmo de grandes sacrifícios individuais tenderá a produzir o que excede o necessário, que terá de viabilizar-se em termos econômicos, o que só se dá com a criação artificiosa de necessidade, para não dizer de adição, e assim de mais cobiça, num ciclo cujo fim não difere do causado pela disparidade de valor do trabalho independentemente do quanto dure. E a solução, para muitos decorrência necessária de alguma conflagração final ou catástrofe que determine maneira diversa de distribuir riqueza, está no entanto à distância de um passo único, o de rejeitar de uma vez só e coletivamente as 'facilidades' do uso do dinheiro, mas que não pode ser dado sem longas conversações que, não devido à duração, mas à profundidade que têm de assumir, não vêm atraindo a necessária, urgente consideração.

29 abril 2019

Idiossincrasias monetárias

A gente não gosta muito quando digo que sé é uma sociedade justa e igual o que se deseja ter, a isto não se chegará jamais enquanto estiver presente, atuante, o dinheiro. E tal por uma razão elementar: se a justiça que se imagina obter é fruto da igualdade, o que inclui a distribuição de bens, de riqueza, não faz sentido na natureza do dinheiro ser distribuído de modo igualitário. Pois para que o estorvo de cunhar e administrar uma moeda (que pode ser, inclusive, eletrônica) e distribuí-la igualmente, se é mais prático compartilhar o quanto se produz? Daí se conclui ser próprio do dinheiro, da sua natureza, produzir desigualdade - não há como fazê-lo atuar de modo a produzir o contrário, sem inutilizá-lo, sem lhe suprimir a função de intermediário nas operações de troca de bens.

De modo geral todos percebemos ou sabemos em detalhes dessa lei ou propriedade do universo das finanças, mas temos mantido - por motivos que ignoramos ou não queremos desvendar - o propósito de salvaguardar o uso desse instrumento e disto nascem duas conhecidas ideologias, uma separando justiça de igualdade e em que impera o conceito de merecimento (mérito) e pelo qual seria merecido ou justo possuir-se mais ou menos das riquezas produzidas em comum, e a outra, a ideologia que vê solução em modular ambas as ideias, de justiça e igualdade, pregando a existência de justiças e igualdades maiores e menores.

O sistema do mérito é, dos dois, aquele que certanente merece atenção, não tanto por ser engenhoso, mas pela ameaça que representa, uma vez que culmina necessariamente na ideia de escravidão. Afinal não surpreende observar que 'merece quem faz por onde merecer', de sorte que o demérito pode ser fruto adubado mais no sujeito do que naquele que o está submetendo. Daí a importância de um sistema de valores que, embora chucro, não aparente o ser e assim possa manter apaziguados em seus respectivos deméritos aqueles a quem se escolheu para o papel.

Quanto à possibilidade de sociedades mais ou menos justas e iguais, é preciso perguntar-se primeiro a que corresponderiam, seja no mundo, seja no universo dos conceitos, igualdades, justezas ou justiças maiores e menores. Vivo ansioso por conhecê-las - caso alguém m'as possa apresentar. Entretanto, se não se pode sequer pensar em igualdade e justiça que não sejam exatas, parece compreensível ou razoável que se fale em desigualdades e injustiças maiores e menores, o que em termos sociais significa que os indivíduos em algum desfavor em seus meios toleram as respectivas desigualdades e injustiças, de onde se chega a que subscrevem o sistema de valores arbitrando que possuam menos e, como se mostrou, que suas tolerâncias são o que alimenta tal endosso.

A desigualdade promovida pelo capital só pode ser reconfigurada pela insubordinação, caso em que se permanece cultivando ou cultuando suas regras e os antes favorecidos podem ter suas posições trocadas com as de alguns antigos desfavorecidos. Mas a insubordinação também pode - e deveria - levar a aboli-lo. É sempre uma curiosidade entender por que não tem sido esta uma alternativa mais considerada.

20 abril 2019

In extremis

É bom manter em mente que ao desejar ou 'exigir' 'apenas um pouco, um mínimo' ou mesmo 'o que de direito' relativamente a seja o que for, está-se de fato desejando ou 'exigindo' isto, pouco importa a quantidade ou a razão da necessidade ou da 'exigência', e assim mantendo-se refém do que alimenta o sistema econômico e moral em que se vive faz bom tempo, isto é, a carência, a necessidade, o déficit, a escassez, reais ou fictícios. A única maneira eficiente de se obter o que se quer parece ser essa que,  a propósito, continua sendo a mais simples:  obter!

12 outubro 2018

Sobre 'alianças políticas'

Em termos gerais, se bem entendo o ponto 'alianças políticas', tenho a dizer que numa sociedade em que o processo de distribuir riqueza se dá por meio da troca (no caso nosso, troca de seja o que for por dinheiro), a movimentação política não pode se dar segundo princípio diferente do 'toma-lá-dá-cá'. Enfim, se todos negociamos tendo por base a troca, por que e como exigir do profissional da política que negocie em bases diferentes se seu negócio é cumprir as promessas que o elegerão ou elegeram e sua moeda é o voto (o seu, o de seus pares e o dos respectivos eleitores), com que aprovará (ou 'comprará') os projetos que realizam as promessas que fez ao eleitorado ou a possibilidade de trabalhar para os aprovar?

Por que exigir deles que negociem o apoio à aprovação desses projetos em bases exclusivamente morais, se nós, por exemplo, somos capazes de negociar e de fato negociamos em bases diversas com aqueles de quem em termos morais  divergimos mais ou menos sempre que o impõe a circunstância (como a do local de trabalho)? O debate moral tende demasiado ao impasse, que de hábito chamamos de 'polarização', o que ajuda em nada à coesão de grupos, especialmente os de tamanhos dos nossos estados e País, e pode impedir indefinidamente a viabilização do que se projeta. Natural é, sim, que a questão moral oriente a negociação, que estabeleça limites para o que se negocia, mas se ela se impõe além de certo limite, pode não haver acerto algum.

É por aí que vai e sempre foi a chamada 'arte da política' em sociedades do tipo da nossa. Pode não se gostar de como funciona, mas por coerência é preciso desgostar também do fumcionamento como um todo da sociedade em que essa arte existe - e ninguém ou muito pouca gente tem parado o bastante para pensar em mudanças profundas das nossas relações sociais, transformações que bastem para por de lado em definitivo todos esses comportamentos que em termos morais repudiamos. Política, por enquanto, é assim: faça o jogo ou morra na praia.

Por fim, é provável nunca ter havido o tempo em que se constituíam políticos para o papel de heróis ou mártires, esses que em tese morreriam pela causa coletiva que defendem. Mesmo o herói e o mártir lutam e morrem por causas próprias, e o que há de especial nesses indivíduos é o terem feito suas as causas que são de todos, de as terem tornado mais importantes do que os interesses privados que os mantêm vivos. Heróico ou não, mártir ou não, portanto, o político - bem como o juiz etc - só vota - ou decide - em causa própria, porque não há outro mecanismo indutor da vontade em seres vivos do jeito que somos. Reitero: se quer mudar o modo de funcionar nesse âmbito, mude antes as bases em que nos associamos - ou vá, o contrário, ajeitando-se à bagunça como der.

A mentira final

O ultraje gerado pelas notícias falsas ('fake news') deveria ser reconsiderado. É provável que devêssemos dar-nos por contentes.

Mentir para alguém desimportante não faz muito sentido para o mentiroso. A mentira é em muitos sentidos sinal de certo respeito, de respeito certo para com aquele para quem se mente. Se o indivíduo não tem peso algum na vida de outro, a lei do menor esforço ensina a este a vantagem de dar de ombros e seguir adiante sobre a de elaborar argumento falso que convença o primeiro.

O problema de 'os poderes' nos mentirem, portanto, estará em quando pararem de o fazer, coisa para que não deve faltar muito tempo. Em breve, com a tecnologia tornando-a desnecessária, a mão de obra em ociosidade forçosa não deverá mais fazer jus ao esforço de a enganarem, e aí, sim, é preparar-se para mais do que protestar, muito mais. Um dia nos endereçarão a última mentira, a definitiva, e quem a ouvir, acredite ou não nela, jamais escutará seja o que for outra vez.

09 julho 2018

Sejamos precisos:

'Lawfare' em verdade é o uso do aparato legal para fins que não o de fazer justiça, seja no seio próprio da sociedade, seja no terreno da política instirucionalizada ou onde mais for possível isto se praticar. O 'lawfare' ocorre - digamos - desde que o mundo é mundo e seu resultado mais comum é a superlotação de cadeias com condenados sem crimes, sem provas ou com quem sequer teve seu processo julgado: esse é o 'lawfare' 'no atacado', inerente ao sistema de classes de nosso modelo de sociedade. É injusto crer e afirmar que o 'lawfare' só atinge personagens do porte do Lula. Lula é somente vítima insigne dentre as milhares mais recentes, anônimas, feitas todos os dias.

Sem mais, (nem menos)

É preciso insistir: 'igualdade' e 'justiça' são substantivos que, a despeito de abstratos, não adimitem que os modulem em termos de grau. 'Mais' ou 'menos' igualdade ou justiça exprime ausência de sentido, exceto o de 'autodepreciação' - por denotar deprecação e, por conseguinte, submissão, carência de ambas - igualdade e justiça - agravada pela disposição de tolerar a permanência de desigualdade e injustiça, desde que em 'padrões suportáveis', seja isto lá o que for. É claro, falo por mim: observação assim é imprudente se fazer a todo inimigo e não é qualquer amigo que a recebe ou agradeça depois de por obrigação a receber. 

02 junho 2018

Greve

Para quem na vida professa a defesa de direitos, uma vez sendo universal o direito a greve, não há em princípio escolha quanto a apoiar ou não grevistas.  Greves são expressão de insatisfação extrema dos indivíduos com as condições de seus trabalhos e sempre dizem respeito à remuneração, de forma direta, ou indiretamente, como quando as queixas referem insalubridade, por exemplo. À exceção, talvez exclusivamente, do serviço público (e é possível que em nem todos os países), o ato de greve é penoso - ocasiona perdas, danos - para toda a comunidade à volta do serviço suspenso, aí incluídos os grevistas, de modo que hemos de convir em que, por um lado, greves não são convocáveis por ninharias - salvo se por autêntico sado-masoquismo - e, por outro, é monstruosa ('teratológica', diria o rábula) a figura da 'greve ilegal'.  Estas considerações parecem preocupantes, mas desse viés não há alternativa a admitir que não existe serviço essencial cuja supressão seja capaz de lançar na ilegalidade os grevistas, nem limites para os ganhos reivindicados (ainda que pareçam ser ou sejam de fato extorsivos) se se professa respeito incondicional à autodeterminação dos indivíduos e ao seu direito consequente, tácito, de numa sociedade capitalista estimarem como bem entendem a própria força de trabalho.

Afinal o capitalismo jacta-se de suceder nesse o jogo tenso de livre depreciação do trabalho alheio (vulgo 'concorrência') mantendo em perspectiva a iminência da escassez à guisa de pressão tática - e nesse contexto, também temos de admitir, não parece caber outra regra ou lei, muito menos uma justa ou duradoura, senão a da 'fricção' do chamado 'mercado', cuja lógica parece ditar que uma vez respeitado mais esse direito básico, à propriedade, ao restante da sociedade tudo se permite para prover isso de que lhe privaram os grevistas se achar por bem discordar do que pedem ou se considerar insustentável a privação. Isto ocorreria, é claro, num mundo capitalista ideal, isto é, se os governos não interviessem, se observassem ou transigissem com as regras do mercado, instituídos, como foram, para justo ou exclusivamente intermediar as relações no mercado dos indivíduos governados ou, ainda, para fazer valerem os termos dos contratos que de livre vontade firmam eles entre si, sendo supostos conscientes ou advertidos das condições ou regras desse jogo (desvalia do trabalho alheio e perspectiva de  iminente escassez como tática).

Entretanto não é que os governos não caibam na função que lhes foi atribuída de princípio e a excedam, desse modo confrontando o mercado, mas sim que, se deixado ao sabor de suas regras, é inevitável em breve o mercado separar os indivíduos em ao menos dois grupos, um a explorar o trabalho do outro, e em seguida produzir a exacerbação dessa exploração, cujo limite é a extinção - por exaustão, na melhor das hipóteses - dos explorados. Por isso governos tendem a ir além do intermediar contratos nos termos em que foram estabelecidos, passando a interferir, limitando-os, nos termos em que podem estabelecer-se, do contrário não haveria ao fim governados e muito menos mercado algum. Em fim de contas, como se percebe, governos tendem a não transigir com o mercado em tudo que este lhes demanda justo para o protegerem, sendo pouco compreendidos nisto, em primeiro lugar, por não haver fórmula duradoura que garanta condições justas para todas as partes sob contrato dessa natureza e que não fira ou desnature a natureza mesma do mercado (as regras do jogo do capital) e, depois, porque governos são, eles também, atores no mercado para além do papel de mediar a que foram destinados desde quando se criaram, e tal por conta de ser igualmente um serviço a mediação que prestam, passível de remuneração como qualquer trabalho.

Como é fácil deduzir, greves são movimentos legítimos do jogo competitivo inerente à concorrência capitalista e nos termos dele seriam descritíveis como atos de apreciação da própria força de trabalho por uns tantos sujeitos que para o efetivarem depreciam necessária e automaticamente a de uns tantos outros por meio da tática incontornável da escassez (aqui, induzida). Coibirmos com repressão as greves, enquanto Estado, como o somos, via governos é visivelmente impensável se não se quer macular o mercado ou, ainda,  os direitos naturais de cada um e todos os seus participantes: mais do que antidemocrática, é anticapitalista a coibição de greves que, e a despeito de serem jogadas fortes, nisto não diferem da norma no capitalismo. Nada impede, entretanto, que se responda ao movimento grevista com força equivalente ou superior, como já sugerido e exemplificado acima, reiniciando o provimento interrompido por outros meios que não compreendam ameaça, entre outros, ao direito dos grevistas à propriedade, fundamental para haver sentido na trama capitalista. Apoiá-las, portanto, e independentemente de quem as declare, além de mostra de compromisso com direitos fundamentais, é contribuir para a exarcerbação de um conflito ou, em outros, termos, é a atitude esperada no jogo autêntico do mercado, atitude genuinamente capitalística.

Irônico, entretanto, é inteirar-nos de o apoio a greves vir partindo mais naturalmente dos seguidores da cartilha marxista, em torno de que se concentra hoje a maior parte dos que se situam na política à esquerda, explicitamente oposta ao jogo capitalista. A razão disto reside no fato de essa cartilha  predicar a exacerbação das contradições ou conflitos inerentes ao manejo do capital com o propósito de o inviabilizar, descrevendo os passos necessários - e, talvez, perpétuos - da transição da sociedade capitalista para a que em tese seria anarquista (e em essência, como tem mostrado a antropologia, incompatível com o conceito de dinheiro). Em vista de que tais passos têm de ocorrer em vigência do capitalismo, à primeira análise a tática se mostra improcedente, como vem demonstrando a História, uma vez que o capitalismo se nutre do contraditório e essa forma de o confrontar pode não passar de mais uma maneira eficiente de prover lubrificante para o funcionamento de sua engrenagem.

A contradição seminal do capitalismo e da qual as demais derivam é o estabelecimento de valores diferenciados para o que não é passível de valoração por ser precisamente um dos elementos do processo inato de o indivíduo conferir valor a tudo mais, a saber, o trabalho. Em essência 'valor' é o que resulta de espécie de diálogo entre necessidade e trabalho, em que uma induz o outro à ação e este a modera. Uma vez obtido isso de que se necessitou ou havendo desistência de o obter, encerra-se o processo de valorar e o que foi ou seria objeto do trabalho e necessidade volta à condição anterior de algo a que se é indiferente. Ainda que compartilhável por indivíduos de distintos grupos, todo valor é em última análise um juízo privado, intransferível em sua inteiridade, inteiramente dependente das condições pessoais do sujeito, isto é, de como percebe sua necessidade e sua capacidade de agir para satisfazê-la. A rotulação com um cardinal do que não é rotulável desse modo - o trabalho - tem por consequência, dentre as principais, o desvio do juízo de valor de seu objeto por excelência, o mundo, voltando-o para exclusivamente isto mesmo que mede ou confere valor numérico ao trabalho, o dinheiro, doravante tornado objeto primeiro de necessidade e trabalho, afastando do sujeito o mundo.

A interposição do dinheiro na relação do indivíduo com as demais coisas é impositiva, mandatória: dinheiro é a forçosa necessidade a ser satisteita adiante das outras todas, o que em outros termos pode significar obtê-lo, se preciso for, até em detrimento delas próprias, como é o caso, por exemplo, do que acarretam em danos as greves ou da destruição de parte do que se produziu - escassez induzida - para apreciar o valor financeiro da parte sobrante. O trabalho pela obtenção de dinheiro termina por resumir-se ao esforço permanente, inexorável, de apreciação do valor do trabalho ele mesmo, processo fechado num círculo ou, caso o indivíduo suceda - ou falhe - seguida ou permanentemente em apreciar o próprio trabalho, numa espiral cujo diâmetro se amplia ou reduz.

Desse viés compreende-se não haver lugar no capitalismo para senão a desigualdade dos indivíduos, tolerada ou não pelos que têm depreciada a força de trabalho (expressão estritamente sinônima de 'vida'), gerando ambiente de submissão que, se involuntária, está em risco permanente de se transmutar em insubordinação. Enfim, o mundo regido pela ideia de dinheiro é mundo em estado perene de guerra em que toda moderação diplomática, se sucede em prevenir conflagração fatal, na verdade a acirra e protela. É tolice, pois, acreditar que se pode derrotar o dinheiro pela força, em conflitos, visto ser pela força, nos conflitos, que ele se perpetua. Resta, portanto, a solução única de abandoná-lo, se é mesmo o caso de alguém ainda incomodar-se ou se é autêntica a queixa de quem se diz incomodar com seu uso. E quanto a isto pode dizer-se que, a despeito de fenômeno inerente ao capitalismo, a greve parece representar, por ironia, a única esperança de dissipá-lo com algo autenticamente seu, no caso, uma greve do uso do dinheiro, desde que universal e eterna - e que melhor se definiria como sorte de jejum ou de necessária e desejada abstinência, como a do uso de droga pesada.

03 maio 2018

O fim da servidão

Nem todo escravo, é provável, o sabe, mas sua mais poderosa arma, de efeito letal, é a servidão. O desejo todo do senhor resume-se a poupar a própria energia, delegando trabalhos considerados ignóbeis, devido por certo ao desgaste físico, além do moral. Para destruí-lo usaria o escravo a estratégia de servi-lo o melhor possível, na verdade, em excesso, adiantar-se às suas necessidades, mantendo-o no limite ante à paralisação, se não paralisado. A plena satisfação acompanhada de inteira boa vontade é como droga: cria dependentes e em doses maciças mata. O indivíduo imóvel, paralisado, é indivíduo morto.

'O criado', de Losey, é no cinema exemplo da tática: quando dá por si, o senhor se vê enredado na teia de lascívia do servidor, só lhe restando sucumbir. A mesma técnica é empregada por grandes indústrias e distribuidoras, além dos bancos e, em suma, por toda uma horda de serviçais interessados somente em manter as mãos nos bolsos do cliente. Todos querem servi-lo - e de fato o servem - para em princípio torná-lo dependente do serviço oferecido,  pois não há sentido aqui em matá-lo com excesso de conforto. Mas é fatal errarem na mão, dada a abundância do que ofertam, e mais cedo ou mais tarde lhe retirarem a inteira capacidade de autodeterminar-se, com o mundo ao alcance indolente do olhar.

Este é o plano até a maquinaria aprender todas as habilidades do homem, quando deixa de ter sentido permitir de favor que trabalhe lado a lado com ela, como ainda ocorre. Passado esse período, terá alguma função só o mecânico, enquanto as impressoras não  se habilitam a produzir de tudo, decerto tornando-se as únicas máquinas necessárias. Então não haverá mais razão de existir senão quem as use. Se já não estiverem suprimidos por fome, guerras e pestilências de toda ordem, os serviçais inutilizados sobrevivendo à primeira leva de mecanização total perecerão junto aos mecânicos, na certa pulverizados por robôs ou dispositivos nos chips implantados ao nascerem. Assim, após o esgotamento das etapas todas do progresso, a Terra verá cumprida a promessa de ser salva, gravada em cinco línguas em monolitos encravados no meio dos EUA,  tornando-se pela prineira vez o Paraíso dos mitos, habitado pelos quinhentos milhões que o mereceram.

29 abril 2018

Mais do de sempre

Toda crítica ao capitalismo é bem-vinda? Talvez não. Por quê? Ora, porque a quase totalidade delas presta o inestimável desserviço de construir-se sobre o pressuposto de ser pensável uma economia onde o dinheiro continue fluindo sem que isto sequer se pareça com o capitalismo. Ledo, imperdoável equívoco. Mostra de o quanto o pensamento econômico dominante espalha sua influência, infiltrando-se nos meios que o opõem como a larva hibernada e sempre pronta a assumir seu papel biológico se a espécie de que é parte se vir porventura ameaçada de extinção.

O capitalismo tem sido insuperável nessa tática de sobrevivência, vide o fim de movimentos como o 'hippie', que passou a marca comprável em boutiques e agências de viagem oferecendo roupas, acessórios e planos de férias, propiciando a experiência 'libertadora' do hippismo a quem pudesse arcar com tanto. A crença de o uso do dinheiro ser regulável de modo a proporcionar um mundo 'mais igual' - seja qual for o sentido desta expressão - é sinal da péssima compreensão do que por natureza seja de fato o dinheiro e que regulá-lo tendo por limite - óbvio - a igualdade (a real, estrita) equivale a inutilizá-lo, a transformá-lo numa tola formalidade cuja manutenção teria custo incalculavelmente maior do que os 'benefícios': a única regra - ou lei -tolerada (ou, antes, exigida, imposta) pelo dinheiro é a da soberania do acordo das partes numa transação comercial, cabendo ao Estado (no caso, este Estado de que fazemos parte, urdido por e para o comércio) zelar para que se respeitem os acordos firmados, sejam quais forem os seus termos, e não o estabelecimento de limites para acordos futuros. Um pouco de História, ainda que em 'farrapos', ajuda a compreender isso.

É esta a base da autorregulação do mercado, que nada promete quanto a equidade na distribuição de riqueza. Equidade, quando muito, é aí tolerada no que toca a oportunidade de o indivíduo participar do jogo do capital, em que é triado logo à entrada se incapaz de sobreviver aos 'livres' acordos cuja mecânica é por inteiro fundada na ideia de carência, mormente a induzida, forjada de modo que os termos contratados sejam favoráveis à parte indutora da necessidade e forcem a anuência da outra. A 'soma-zero' - operação comercial sem vantagem de alguém - nunca pode ser objetivo no 'dinheirismo' (ou capitalismo), senão provisoriamente, à guisa de tática visando vantagens posteriores: uma economia com distribuição equânime de riquezas, por seja qual for o método, é profundamente desinteressante - além de contraproducente - do ponto de vista do dinheiro e o contínuo resultado 'soma-zero' das operações comerciais equivaleria a insustentável impasse militar diante do front, em que se investiu demasiado para serem tolerados adiamentos da perspectiva de vencer.

Mas não nos precipitemos em concluir, de modo semelhante ao que concluem os ingênuos críticos do capitalismo, que o dinheiro é criação daquela malignidade suposta inerir ao humano: outra sólida tolice. O dinheiro é ideia urdida ao longo de milênios, assim sugere a História, enquanto solução para o escambo efetivar-se sempre, para haver comércio ininterrupto mesmo quando o produto interessando a uma das partes numa transação comercial não estivesse disponível: assim como o escambo, que é a troca visando tacitamente a equivalência ('soma-zero') de riquezas, o dinheiro se estabelece sobre a perspectiva da carência, da indisponibilidade de algo. Qual outra razão, além da falta daquilo de que se necessita, levaria comunidades antes compartindo suas produções a medir o que passam a trocar entre si (escambo) e a garantir a realização dessas trocas mesmo quando seriam potencialmente frustradas (uso do dinheiro)? Escambo e dinheiro consistiram em respostas funcionais - e positivas, portanto - a circunstâncias adversas, mas terminaram mostrando-se, assim como outras tantas criações humanas, mais danosos do que o desejado, permanecendo em uso por estes milhares de anos em virtude da relativa praticidade e, principalmente, do hábito.

Escambo e dinheiro são o que são, são como são, funcionam como têm de funcionar. É para isto que a parca sabedoria do 'despotismo esclarecido' em que consiste a doutrina neoliberal tenta com grande sinceridade alertar: não há outra maneira de usar o dinheiro senão o deixar a cargo de quem o usa fazer dele o que bem entenderem, desde que sob a guarida de quem seja capaz de garantir o cumprimento dos termos desses entendimentos, no caso, o mecanismo de governo deste Estado como o conhecemos. Com empenho ainda maior do que o de justificar o uso do dinheiro, o neoliberalismo se encarrega de garantir o funcionamento da economia que ele move, demonstrando, por um lado, o quanto crê em sua eficácia e, por outro, o volume do que conhece a respeito desse signo numérico de valor, tamanho tem sido seu investimento em desinformar todos sobre a matéria: uma vez entendido haver vida econômica para além da contagem de moeda, sem hesitar o público em massa daria as costas para o dinheiro e, em consequência, para o seu efeito principal e mais nefasto, a desvalia relativa de trabalho e necessidade humanas, que em verdade é condição sine qua non da ocorrência do escambo.

E enquanto houver massa crítica convencida da imprescindibilidade da intermediação monetária na circulação de riqueza este sistema continuará tendo o fôlego habitual, sendo aqui coibido por uma lei mais intolerante e logo adiante achando um modo de compensar o que esta lhe fez perder. O dinheiro corre para onde se produz o de que mais se necessita e aí tende a acumular-se inevitável e necessariamente: produzir para uma demanda avantajada tem custos de hábito altos, sendo preciso tanto honrá-los como demonstrar capacidade de o fazer, de que dá conta o acúmulo de riqueza que, entretanto, só se sustenta enquanto houver quem aquiesça à desvalia da própria força produtiva e à hipertrofia do próprio desejo de consumir. Em uma palavra, é perda de tempo e de coerência protestar contra o acosso do dinheiro sem possuir sérias intenções de ao menos pensar em como livrar-se dele, o que não se consegue sem buscar conhecê-lo para além da enganadora teoria econômica dominante. Antes de uma disciplina exprimível em números a economia é formalização de uma moral (no sentido de 'hábito'), uma nascida da ideia de escassez (real e, principalmente, induzida) e orientada por ela para produzir miséria humana em meio ao que em realidade é fartura. É evidente que há o capitalista em crise aguda de insanidade (vez que a moral do capital é insanidade crônica), mas o principal artífice dessa miséria é precisamente sua vítima constante, porque a alimenta com o desvalor de si mesma, com a mercantilização da própria força vital, manifesta na necessidade que tem e no trabalho a ser despendido para satisfazê-la.

14 abril 2018

Balzaquianas Brasileiras para a Democracia Indireta

'Democracia Representativa' - o nome diz tudo: grande peça!  À primeira vista talento inato para o drama, aquele  com tintas de épico, o tempo revelaria seu pendor verdadeiro: a ambição secreta de protagonizar farsas, as do gênero revista, em que satisfaria de multidões os anseios mais recônditos. Sucesso meteórico e permanente, viu-se obrigada a mexer no preço do ingresso quando as filas davam nó na cidade, a título de prover o conforto na plateia. Vê-la em cena, hoje, é para quem pode.

Foi como ganhou fama de cortesã, daquelas de alta rotatividade. Mas como para todos os fins é atriz ainda, por questão de respeito e em proveito próprio a clientela impôs ao assunto tratamento circunspecto, designando-o 'alternância', doravante cobrada de todos com rigor absoluto, mas cumprida mormente à base de trapaça, nem sempre em grande estilo, tolerada entretanto com o melhor da hipocrisia.

Disso resulta fenômeno inusitado, intensa movimentação em todo e qualquer recanto da casa onde se julga haver a mais pífia privacidade, dos lavatórios sempre lotados aos desvãos sombrios no foyer ao lado das escadas, sem falar nos corredores e em camarotes e frisas a cortinas cerradas, para onde acorre a assistência, seja em grupelhos, seja induvidualnente, a manejar qual recurso for de maquiagem, máscaras, todo adereço ou indumentária inusitados e à disposição para a doce vanglória de poder ocupar a cena ao lado da estrela por quaisquer dois ou três esquetes consecutivos, ou mesmo para conservar o assento de uma sessão para a seguinte. Na fila de espera o populacho resmunga, esbraveja, vocifera, isto não querendo dizer que não compreenda a resistência geral para deixar o teatro ao fim dos espetáculos, prática consabida e transigida em base universal como é, de modo que a despeito dos sinais de certo cansaço, desenvolveu a Democracia Representativa tolerância inesgotável para os tipos mais truculentos e nada discretos com quem sob pressão constante é frequente ter de contracenar.

Mas não se avance que o sarcasmo e a leviandade que entretêm gerações se tenham por acaso lhe colado à cara, por assim dizer. Não. Mantém-se o mais estritamente possível nos limites da profissão, assim dissimulando com eficiência razoável seu potencial ainda latente - apesar da meia-idade - para apaixonar-se, a um só tempo desejado e temidos por quem a cerca. É coisa de uma vez na vida e que dá motivo para revoluções se transparecida, em particular se o felizardo é recém-chegado e, para piorar, pobretão. Em tais circunstâncias vêm à luz suas insuspeitas fragilidades, como seria de esperar, quando está sujeita a perder cacos, pular texto, marcações, tropeçar no ponto, a cabeça longe a tramar maneiras de atrair ou de manter ao lado o escolhido, mesmo quando cadeiras começam a ser rasgadas, programas, picados e o rumor crescente se avizinha da vaia, alvoroço de hábito durando não mais de dois atos seguidos, quando então é invadido o palco e o par, separado, talvez para todo o sempre.

É nessas circunstâncias ásperas que de monossílabos rosnados entre dentes à mostra a ela é dado conhecer o que se omite dos relatos populares de sua história, além de um tanto mais que a contraria: seria antes bastarda dum Aristocratismo Monocrático que descendente tardia da mítica Democracia Direta, como alardeado por aí, que foi assim chamada para a distinguirem de si desde que sucedeu na carreira teatral e cujo nome correto é 'Democracia', somente - "A verdadeira", sussurram-lhe ao ouvido quando acham por bem humilhá-la. De todo modo, pensa com tristeza para os próprios botões, 'Representativa' ou 'Indireta' são epítetos jamais envergados por ela com conforto, e o pendor que têm para o pejorativo é provável ter sido determinante para que do épico tenha descido à revista e daí à involuntária cortesania, como se fora sempre ou procurasse ser eco, embora vazio, duma ancestral postiça e, ademais, de existência quiçá improvável ou impossível, se confiável é tudo quanto nesses momentos de ignomínia a ira alheia lhe diz. Tanto que começa a apreciar a eventualidade de sem constrangimentos adotar nome bombástico e mais condizente com quem de fato é (e a despeito da pecha da bastardia), o de 'Democracia Oligárquica' ou 'Oligarquia Democrática', a escolha de um dos quais cogita de realizar em concurso que cinicamente confiará a sufrágio universal.

Vinganças à parte, a melancolia dessa alma feminina salta aos olhos depois de reconduzida à função habitual. É dum suspiro fingindo-se de fingido, da clássica pausa para induzir risada ou ovação que se depreendem os amores impedidos, presos, exilados, ou coisa pior, a tragédia de ser ilusão manipuladora e manipulada de quem precisa desse engodo para dar interesse à própria vida. Portanto aproximem-se, senhoras e senhores, não deixem de ver de perto esse espetáculo permanente, enquanto ainda em cartaz; não percam a oportunidade de estar em cena com a última das deusas. A qualquer um é permitido entrar,  ou assim se diz; é claro, desde que possa!

13 abril 2018

O pecado é o mercado

Lê-se no título da matéria: "Jesus não morreu por 'nossos pecados', mas sim por enfrentar o interesse, a conveniência e a cobiça". Não seriam uns as outras três coisas?

Sim, Cristo morreu por tudo isso: isso com que temos concordado, mormente de modo tácito, e contra que até nos insurgimos, mas somente quando alijados da possibilidade de o praticarmos, para que o pratiquemos. O que mais isto seria além de 'os pecados nossos de todos os dias'?

Sempre lembro aos 'cristãos': até onde recordo, Cristo jamais perdeu a linha, exceto uma única vez, e não com o demônio, que o assediou no deserto, nem mesmo com Judas, que vendeu um beijo e por isso matou-se, mas com a presença, na casa d'O Pai, do que julgou merecer toda sua ira em violência física, o 'mercado'.

O que mais o mercado é além do exercício mórbido de desmerecimento recíproco do que possuem de único os indivíduos para sobreviverem neste mundo, a capacidade para o trabalho? A 'pechincha', que até nos diverte, é a semente de toda a discórdia num contrato social permanentemente orientado para seu potencial extremo, o da guerra.

No mito - ou história - cristão, se revoltoso como Barrabás, Jesus teria ido um tanto além de apenas denunciar a exploração pelo homem do trabalho do homem, apontando o que a causa, seu instrumento essencial, esse cujo poder de sedução tem sido o motor do conflito permanente em nome de o possuirmos, de o controlarmos sob a alegação vazia, a promessa enganadora de sermos capazes de retirar de sua natureza malsã algum bom fim.

Foi morto sob a acusação de se dizer 'Filho de Deus', que para bom entendedor era como se perguntasse: "Se eu sou, como não o seria você também?" Morreu por demonstrar a 'Igualdade' com tratar a todos por 'irmãos', aplainando os aclives do poder sobre os vales dos despossuídos.

Pregou o compartilhamento e a dádiva, e com elas o abandono da vã tentativa de medir o trabalho humano com o fim de negociá-lo. Com o escândalo no templo teatralizou a ira justa contra o cinismo de fazer medrarem as raízes de nossas piores diferenças onde habita a razão de sermos todos um só.

São mil, novecentos e setenta e cinco anos de pura zombaria com o terem imolado. Contam-se nos dedos os que entenderam as lições que deixou.

23 março 2018

Em torno do 'Estado' que o neoliberalismo quer

Enquanto doutrina sócio econômica o capitalismo dá sinais de haver chegado a um modo idiossincrático de despotismo esclarecido após a longa elaboração da ideologia neoliberal. Os traços genéricos deste não discrepam dos normalmente atribuídos ao despotismo esclarecido político, que em linhas gerais se resumem a um centro de poder absoluto atuando de modo menos desfavorável em relação ao povo do que o esperado do déspota típico. De modo que o neoliberalismo não pende mais, como a doutrina capitalista tradicional, para justificar ou mesmo dissimular os traços do uso do dinheiro que inevitável e tragicamente resultam em danos para o tecido social (e conflitam com sistemas éticos pré- ou pós-iluministas), passando a fazer, ao contrário, sua apologia, confiado em que duma perpectiva mais ampla e em médio ou longo prazo levariam a sociedade a algo preconizado por socialismos 'não-radicais' ou muito próximo disto. A conhecida metáfora do 'bolo', que precisa crescer antes de ser 'dividido', é emblemática da fé neoliberal.

Daí aquela regrinha banal embutida na doutrinação despótico-esclarecida dos neoliberais: dinheiro bom é dinheiro desregulado, movendo-se ao sabor de acordos (contratos), estes, sim, passíveis de supervisão pelo Estado, de modo a garantir que se cumpram, e só. O contrário disto - o controle da circulação do dinheiro com regras (leis) que na verdade prescrevem o conteúdo do contratado, isto é, que ditam ou precedem os acordos - freia o 'mercado' e tem por limite máximo fazer dele, dinheiro, brinquedo tolo, mera formalidade em que os atores todos são poupados de surpresas ou sobressaltos nas transações que realizam, uma vez que conhecem em detalhe cada passo do processo econômico desde, por exemplo, o recebimento de uma remuneração até seu esgotamento no que invariavelmente poderão ou terão de comprar,  ciclo que se reinicia a cada remuneração nova, para sempre. Num cenário como este o conceito de dinheiro teria extirpada sua essência competitiva, estaria 'purificado' - por assim dizer - dos perigos de sua natureza lúdica e, o pior, seu uso carregaria em regime permanente uma tensão, uma vez que o potencial para competir permanece latente, coibido por força externa, a da lei de um 'Estado forte' (ou autoritário).

Por natureza própria o dinheiro é jogo de azar e a moeda o maço de cartas com que é jogado, justo como o pôquer, que com efeito o celebra na permissão do blefe, jamais a do roubo (é natural), enquanto o Estado tem a função do xerife, de prevenir quando possível o confronto dos jogadores num lance fatal - para si e quem estiver ao redor. É em nome destes que cercam o núcleo potencialmente perigoso e explosivo da jogatina que a lei usa justificar sua intervenção, cujo limite, esgotados os recursos para manter num mínimo a ordem tolerável, é o da proibição total da jogata, se é que, no caso do pôquer, há sentido em haver os estágios intermediários até ser proibido de uma vez e nos quais se sugeririam alterações das regras do jogo que, evidentemente, o desfigurariam, caso este das interferências do Estado no universo da finança, que redundam nos consequentes protestos dos doutrinadores neoliberais.

O neoliberalismo, é bem provável, não existiria, não fossem as investidas críticas sobre o papel do Estado e do dinheiro nas disfunções da sociedade empreendidas pelas doutrinas que se seguiram à Revolução Francesa e como um todo foram adjetivadas 'de esquerda' ou 'esquerdistas'. O pensamento neoliberal se constitui enquanto resposta às soluções radicais da esquerda para o saneanento da sociedade, que têm por fundamento a identificação de Estado e dinheiro como o cerne da disfunção social, confluindo para a meta de eliminar ambos.

Dado curioso é essa habilidade de absorver traços seminais do ideal esquerdista desenvolvida pelos teóricos neoliberais, como o 'anti-estatismo' e a garantia de se produzir uma distribuição equânime ou, no mínimo, satisfatória da riqueza, mesmo sem a necessária eliminação do conceito de dinheiro constante de propostas puristas da esquerda como os modelos de anarquismo. Esse aspecto, que do viés anarquista não passaria de uma tola e mal ajambrada amontoação de conceitos, é o que coloca o neoliberalismo em rota de colisão frontal com o comunismo que, a despeito das idas e vindas quanto a o quê o termo deva significar, pode ser entendido como a receita compreendendo Estado forte no controle da distribuição de riqueza intermediada pelo dinheiro à guisa de fase transitória na direção de extinguir as máquinas governamental e financeira, ou seja, na direção do Estado anarquista. O conceito de 'anarco-capitalismo', mais do que ultrajante do viés anarquista, não é senão a exposição do consequente limite da rejeição ao Estado constante da ideia de Estado mínimo dos neoliberais.

Todo este quadro trai uma multissecular controvérsia em torno da noção de Estado desde que, de Hobbes a Rousseau, passando por Locke, o Iluminismo se enamorou da ideia de 'contrato social' e a identificou com a de 'Estado-ele-mesmo' ou com o que está no seu cerne. De inconveniente na noção iluminista de contrato social é a crença de a grei humana ter chegado de comum acordo ao estabelecimento da governança, o que é verossímil, embora não o seja o motivo que presumidamente a levou a isso, 'pormenor' altamente discutível, se não de todo falso: a submissão a um governo (ou liderança) seria a única ou melhor forma de prevenir o pendor inerente aos indivíduos em associações para a destruição recíproca! Os partidários do Estado-enquanto-contrato-social não raro lançaram (e ainda lançam) mão de por em paralelo as condições gregárias nossas e as de outras espécies à guisa de demonstrar a necessária presença do líder estabilizador para a coesão sustentável das sociedades, embora o passo das descobertas em áreas como a do comportamento e psicologia animais, na zoologia, da arqueologia, da antropologia e da história venham apondo dúvidas sérias, no mínimo, a essa concepção de sociedade.

No entanto a ideia de 'contrato social' traz em si a 'revelação' de que num grupo de indivíduos quaisquer, não importa o que se passe, tudo deriva necessariamente da anuência de seus membros, isto é, a 'revelação' da natureza democrática de modalidade direta inerente à dinâmica interna das greis. Foi desta derivação da concepção de 'contrato social' que surgiram tanto reações como a da sentença "o Estado sou eu", atrevida e atribuída ao 'absoluto' Luís XIV, quanto o resultado democrático da Revolução Americana, bem como o que motivou os quase esquecidos revoltosos no Haiti. Além disso hoje começam também a firmar-se, via zoologia, arqueologia e antropologia, visões de o funcionamento das greis animais em geral aproximar-se mais dum anarquismo em que entretanto se toleram comportamentos como a poligamia conquistada em disputas (ou jogos) que podem envolver até a violência, e de nós humanos termos 'escolhido' organizar-nos em torno de lideranças muito recentemente, sem que isto tenha advindo do propósito de refrear um suposto pendor para a destruição recíproca, uma vez não haver nessas sociedade pré-históricas sinais de conflitos que sequer ameaçassem, muito menos tenham desfeito os liames sociais.

Essa nova e não deliberadamente narrada história, feita dos resíduos deixados pela humanidade de como ela se constituía enquanto organismo social, sugere que o verdadeiro 'elo perdido' da sociologia (e da economia política) seriam os motivos a nos terem levado do compartilhamento de riquezas à troca delas por equivalência do trabalho investido em produzi-las, ou escambo, em que está implícito o estabelecimento ou a atribuição de valores para os ítens trocados, assim determinando o aparecimento do conceito de dinheiro. De modo geral assume-se que essa noção muito simples, além de verdadeiramente engenhosa e revolucionária,  surgiu enquanto solução para certos entraves do escambo, notadamente a ausência de certo produto interessando a pelo menos uma das partes, circunstância potencialmente paralisante para as negociações. A eleição de um dos artigos intercambiados para a função de intermediar o intercâmbio dos demais, além de prevenir a paralisação dos negócios, mostrou-se utilíssima no processo de atribuição de valor ao negociado e evoluiu no sentido de atingir a portabilidade ideal, bem como a garantia de ser respeitado o valor que representava, obtida com a cunhagem da moeda garantida por um Estado.

O mencionado 'elo perdido' da transformação de uma sociedade que compartilha em outra que pratica o escambo e, em consequência, descobre o dinheiro é importante para compreender-se também a estrutura deste Estado sob que ainda se vive, muito embora haja bastante consenso ao redor de ele ter iniciado nas primeiras cidades-estado, que por sua vez nasceram dos que teriam sido pontos de encontro de quem dispunha de algo a ser trocado, tornados em seguida entrepostos capazes de inclusive permitir a estada dos negociantes, atingindo finalmente a condição de cidades. Nada impede de considerar-se que ao menos umas tantas cidades-estado tenham surgido diretamente de assentamentos agrícolas que centralizassem o comércio em certa região, mas a estrutura que se estabeleceria em todas elas sugere fortemente a ocorrência do escambo e a necessidade de uma intermediação progressivamente mais forte nas querelas que suscitasse, a qual derivou, por sua vez, na centralização da economia por meio de instrumentos coercitivos como leis, braço armado do Estado e, finalmente, moeda. Em termos estruturais este Estado sob que vivemos descende imediatamente da 'mentalidade' do escambo ou, mais provavelmente, dessa modalidade do escambo aparecida com a descoberta do dinheiro, e se não isso, ao menos ele evoluiu em paralelo e em conivência com todas as idiossincrasias do universo financeiro.

De curioso, irônico e paradoxal em todo esse processo com respeito à ideologia neoliberal em sua 'guerra santa' contra o 'Estado' é constatar que não passa de reencenação do tema batido do criador voltanto-se contra a criatura que o engole, além de evocação do que seria espécie de 'era de ouro' em que o Estado presumivelmente não excedia a função de mediador moral dos contratos que sobre quaisquer bases as partes em escambo estabelecessem, ou seja, sorte de 'fundamentalismo' em economia. Não bastasse o estorvo de julgar tendo alicerce assim instável, uma mediação - por assim dizer - não-coercitiva não teria como fazer valer em bases exclusivamente morais o seu julgamento, uma vez que poderia haver motivos de sobra para uma ou ambas as partes o rejeitarem: nada de mais consequente, pois, que o mediador evoluísse para estabelecer ele mesmo os princípios a partir de que julgar, bem como os meios mais 'convincentes' de garantir a 'anuência' dos contratados a seu julgamento, pois afinal estava em jogo o seu ganha-pão, vez que não é inverossímil concluir daí que a noção de imposto nasceu 'pronta', do direito que o Estado teria ao pagamento por seu difícil e 'delicado' trabalho de mediador.

No fundo todo doutrinador do neoliberalismo sabe que na ausência do 'Estado' (nome que insiste em dar a 'estrutura de governo'ou 'govenança') forte a mentalidade ainda hoje predominante, de não haver alternativa para o uso do dinheiro, é o potencial fomentador, sim, de toda sorte de conflito, incluindo a guerra, sabendo também que 'anarco-capitalismo' é ideia insustentável, se não descrição de fato inócua, embora hiperbólica, da estrutura desse nosso Estado que em fim de contas não é senão um dentre os partícipes do jogo do dinheiro em larga escala ou, ainda, a cadeira cobiçada dessa brincadeira em que somente um desses grandes jogadores pode sentar-se por vez. Como todo despotismo esclarecido o neoliberalismo é uma coleção de artifícios populistas, isto é, ideologia (ou propaganda), principalmente, e certas deliberações para o 'mercado' visando manter a massa humana em sua rotina ignorante de dirigir o fluxo de distribuição de riqueza a uma fração da população, porque os seus ideólogos sabem também inexistir possibilidade real de o conceito de dinheiro promover senão discrepâncias econômicas, algumas até toleráveis, salvo se submetido a severa regulação, o que, como se percebe, o inutiliza ou, o que dá no mesmo, o transforma num brinquedo sem graça.

21 março 2018

Húbris e anarquismo

Trabalho imprescindível para todos os que precisam orientar no tempo suas 'vocações' para a esquerda, 'Anarquismo', de G. Woodcock (poeta canadense e pensador anarquista do século passado), vai muito além de reproduzir cronologia e expor teoria. Ali o simpatizante do hoje popular marxismo pode perceber como e por que esse sistema aparece de uma linha já solidificada de propostas de superação desse Estado-como-o-conhecemos, iniciada com o 'Justiça Política' de Godwin e que só após Proudhon foi chamada de 'anarquista'.

'Anarquismo' foi impresso em 1962 e em vista do seu escopo é provável que Woodcock o tenha planejado desde os anos 50, período de florescimento do 'sonho americano' e sua ambição de constituir uma 'classe média' cujas condições materiais fariam corar de vergonha ou inveja o projeto espartano de proletariado dos soviéticos. Na introdução, em que se contrastam apelos e reticências do anarquismo em geral, é possível entrever a sugestão de que a hipótese de a proposta materialista dos americanos ser empreendida por um Estado proletário não consiste em delineamento inverossímil do que sonhava Marx.

O marxismo estava seguro de que sua conquista da máquina de governo já alimentada pela produção em escala industrial produziria, se convenientemente admimistrada, a exuberância que o anarquista descartava por princípio e não sem motivo. Logo após publicar 'Justiça Política', por exemplo, Godwin foi acusado por Malthus de propor sistema de prosperidade que levaria a humanidade a exacerbar sua tendência para superar em população a capacidade de a Terra lhe prover subsistência, assim expondo-se a calamidades intermitentes por cujo intermédio o habitat restauraria o próprio equilíbrio. A resposta de Godwin enfatiza sua certeza de o progresso ininterrupto da sociedade anarquista ser função do constante aperfeiçoamento de conhecimento e uso da razão, franqueado pelo fim da coerção dos governos.

Mostra do quanto em geral temos em conta o nosso potencial mental enquanto agente maior de nossa sobrevivência, o argumento de Godwin permanece semi-ignorado até o golpe que supostamente o aniquilaria, vindo da importância conferida à competição no Evolucionismo, apesar de Darwin ter insistido posterirormente para que também não se desdenhasse o papel evidente e seminal da cooperação entre indivíduos de um mesmo grupo. Geógrafo respeitado que por anos estudou habitats siberianos, Kropotkin dará ao problema resposta definitiva no início do século passado, mostrando aos 'darwinistas sociais' o óbvio, isto é, o quão incompreensível seria a formação de greis se servisse somente para o confronto e a destruição recíproca dos indivíduos, ou o quão disfuncional seria a natureza se entre as diferentes espécies a disputa sobrepujasse a boa-vizinhança. De qualquer modo o anarquismo de viés pacifista já havia optado bem antes por conservar sua confiança na capacidade de o discernimento humano manter com o meio-ambiente diálogo de alto nível. Ao marxismo, que via nisso a desculpa dos anarquistas para proporem 'socialização da pobreza', por questão de bom senso é atribuível a mesma confiança, bem como outra, mas insustentável, na capacidade de o Planeta sobreviver à nossa húbris - a única que nos é possível e igualmente cultivada, nutrida e acariciada pelo inimigo declarado do marxismo (e do anarquismo), o capitalismo.

Ao concluir a escrita de 'Anarquismo' Woodcock na certa não previa a sobrevida da classe 'única' soviética que, a despeito da zombaria 'ocidental', alimentaria por ainda trinta anos o estado de espírito predileto de seu rival maior, o de permanente alarme.  Quanto ao 'sonho americano', não se imaginava que passasse lentamente ao estado de pesadelo interminável ao retornar de sua primeira viagem à Lua ou de uma guerra que, coisa de sonho, achou por bem perder. Ainda assim foi espalhado mundo a fora, em versão simplificada ou adulterada, mas nem por isso sustentável sem que contemos com o mínimo de três ou cinco planetas para que todos o sonhemos sem sobressaltos.

Resultado: Malthus, ao que parece, não teve ainda o seu ponto provado, na certa por culpa da 'mão invisível', de Smith, que tem cuidado de manter viva e miserável, além de crescente, a porção maior da espécie humana, desse modo retardando o colapso final do meio-ambiente. Até o presente a humanidade tem evitado reconhecer-se inepta com a atribuição de todas as suas misérias ao caos comportamental dum mercado a que o uso do dinheiro impõe a paradoxal condição de ser 'livre'. Do seu lado o capitalismo financiou a demonstração de o luxo não ser mesmo coisa para todos, o contrário do que ele, o marxismo e um certo poeta acreditam. E apesar de 'franciscano' (ou 'estóico'), o projeto anarquista ainda não foi descartado com a proliferação de marxistas e dos moderados socialistas, embora hoje atue sob disfarces que visam distanciá-lo de soluções violentas que em seu nome o desespero de uns tantos oprimidos adotou, também conhecidas por 'terrorismo'.

Em essência ou congenitamente o anarquismo não pode ser senão pacifismo, embora devido às soluções múltiplas que se propuseram para aviar sua implementação - etre elas o marxismo - tenha-se tornado por vezes confuso para quem alimenta a urgência justa de ver-se livre de coações que, não bastasse o serem violência, são inúteis, improdutivas. Por isso ele tem circulado o mundo sem quase anunciar o próprio nome e vestindo-se, por exemplo, com a exuberância sugerida nas ideias do genial Jacque Fresco, as de uma sociedade inteiramente apoiada na mecanização e no compartilhamento da produção, além de orientada exclusivamente pelo método científico. À parte o risco de tornar-se uma República platônica (ou até um Estado marxista), a proposta de Fresco - Projeto Vênus - mantém os mesmos traços da confiança depositada por Godwin e Kropotkin no potencial da mente humana: sem opressão seríamos todos sábios (ou tenderíamos vertiginosamente para o ser).

Em certo contraste com o Projeto Vênus, que influenciou iniciativas como o Movimento Zeitgeist de Peter Joseph, há o Planeta Ubuntu, proposta sul-africana perfilada com o sentido dado por Kropotkin ao problemático conceito de 'propaganda do dever', contrário ao que lhe dava quem compreendia o 'dever' como supressão do Estado opressor por quaisquer meios, incluindo os violentos e mesmo quando não necessários. Na visão de Kropotkin a ação a ser propagada é a construtiva, ou seja, a que demonstra em pura prática, sem consistir em prenúncio do 'ghandismo', a inutilidade de manter-se a adesão ao modelo corrente de sociedade. É isto o que empreende o Planeta Ubuntu - e com sucesso, segundo anuncia - ao convidar indivíduos em certas comunidades pequenas a oferecerem semanalmente parte do seu trabalho (cerca de três horas) para em cooperação produzirem o que o sistema social defeituoso em que vivemos é incapaz. Godwin e Kropotkin já haviam tratado do quão eficiente e maior seria nossa produtividade se orientada pelo objetivo fundamental de satisfazer necessidades, exceto a de gerar dinheiro. Além do mais é preciso gerar exemplo, demonstrar que e como é possível um mundo sem dinheiro.

A leitura de 'Anarquismo' de Woodcock oferece oportunidade para refletir-se sobre a história persistentemente trágica da presença no mundo dos ideais de esquerda, que não se inicia, mas se torna mais intensa, com a Revolução Francesa. Ali se percebe que o conceito de húbris, em princípio responsável pelo desdém do marxismo pelas ambições do anarquismo, deriva na verdade da pouca confiança de alguns pensadores da esquerda no potencial do intelecto humano enquanto traço universal da espécie, o que se reflete naturalmente sobre eles próprios e termina por induzi-los a justificarem a adoção, em suas estratégias de combate à opressão, da opressão ela mesma ou dos comportamentos e ideias que a determinam no sistema opressivo que acreditam combater. Em face do anarquismo o marxismo pode ser definido como artifício do desespero, emulação por certo irrefletida e infernal, mas bem-intencionada, do quanto ambos mais desprezam.

Woodcock concentra-se mais na dimensão política, essa de que por vezes se presume ser possível falar sem o concurso ostensivo da dimensão econômica, hipótese que a exaustiva e obsessiva descrição feita por Marx da dinâmica do 'capital' descarta. Entretanto a compreensão da economia falha em prover o suficiente para a sociedade metamorfosear-se sem que uma terceira dimensão, a intelectiva, seja aplicada à identificação e à análise da raiz evidente de nosso purgatório social e assim construir o sentimento indissolvível de vexame e repúdio por permanecermos há tanto tempo nele. A certeza de ser a noção de dinheiro a responsável por todas as nossas misérias, longe de consensual, tem sido também inefetiva no provimento do necessário para nos envergonharmos da trágica distribuição da riqueza (que por definição é tudo quanto o trabalho é capaz de produzir). Apesar de em boa medida comprometidas com a História, grande parte das visões envolvendo o papel do dinheiro no nosso contrato social é insuficiente para suscitar algo além da falsa impressão de ser possível usá-lo - e mesmo de já ter sido usado - de algum modo indiscutivelmente justo.

Mas se não foi possível para Woodcock - por quaisquer razões - discutir em profundidade, em 'Anarquismo', esse aspecto estrutural do Estado sob que vivemos e temos vivido há milênios, é certo que em muitas de suas passagens o leitor achará vestígios do que o levará, se de fato interessado e persistente, a empreender por si próprio essa discussão. Afinal uma das virtudes desse livro seria a de mostrar que, se possui uma húbris, até nisso o anarquismo é pura e boa subversão: pois só por modéstia, tendo por oriente a moderação, poderá a capacidade intelectiva humana, paradoxalmente, vangloriar-se do que faz (ou fará) no mundo ao seu redor. Paradoxo antigo, de qualquer modo.